Por Fred Soares
Há noites em que uma quadra fica maior do que a cidade. A madrugada de Vila Isabel foi dessas: a rua parou, o bairro virou planeta, e o planeta coube dentro de um refrão. O que se viu ali não foi apenas a escolha de um samba-enredo; foi a volta de um órgão vital à máquina de existência do Rio — o coração.
“Macumba é samba, e o samba é macumba.”
O verso entrou como senha e sacramento. Não era só canto: era cura. Por isso ninguém reclamou da final sem disputa. As pessoas foram para sentir. Em tempos de tanta frieza, o povo fez o gesto mais radical: chorou sem medo.
Por décadas, ensinaram a medir o carnaval em centésimos. A poesia virou rodapé, a lágrima foi tratada como falha técnica. Transformaram a maior festa popular do mundo em planilha. E então, de súbito, dois homens armados de caneta — André Diniz e Evandro Bocão — lembraram que o samba não é geometria, é combustão. Eles escreveram para que a cidade reaprendesse a vibrar.
“Sonhei macumbembê, sonho samborembá.”
Há sonhos que acordam a cidade. Heitor dos Prazeres levantou-se do óleo das telas e do pó dos discos. Voltou como entidade civil, compositor de esquina e pintor de eternidades, aquele que suturou a Bahia à Praça Onze, o terreiro ao asfalto, a memória africana ao samba urbano carioca do século XX. O enredo o puxou de volta à luz; o samba lhe deu voz de novo. Cada estrofe parecia abrir uma janela para a história — não a história oficial, mas a história que se canta.
A Vila Isabel, por sua vez, cumpriu seu destino. Escola que nasceu do morro e desceu para conversar com o asfalto, que uniu Macacos, Pau da Bandeira e Boulevard 28 de Setembro num mesmo compasso. Quando a Vila é a Vila, o Rio se reconhece. Não é acaso que seus momentos maiores, sobretudo a partir dos anos 80, tenham brotado da afirmação sem rodeios: somos negritude. É manifesto e ternura. É orgulho e abrigo.
“De todos os tons, a Vila negra é.”
A frase funciona como espelho e bandeira. Nela cabem Martinho que sorri, Seu China que vigia, as baianas que rodopiam como cata-ventos do tempo. A quadra inteira virou terreiro e quintal, como canta o verso. Houve algo de telúrico — chão batido, poeira antiga, raiz com as mãos para fora. O samba assentou fundamento onde a teoria não alcança: na carne.
Porque samba-enredo é bicho vivo. Nasce no concurso, cresce na gravação (onde apanha e aprende), experimenta o corpo dos ensaios — na Marquês e na rua — e só então, adulto e suado, enfrenta a madrugada da Sapucaí. É uma vida em quatro atos. Quando sobrevive a todos, deixa de ser música e vira acontecimento. A obra de André e Bocão começou esse percurso como se já soubesse o caminho, assoviando para a eternidade no ouvido.
“No branco da tela o azul do pincel.”
Heitor pintava o que o samba lembrava: gente comum com dignidade de herói, quadris que narram melhor que tratados, crianças que jogam bola com a lua. O samba campeão entendeu essa paleta e trocou tinta por tambor — cada surdo uma pincelada grossa, cada tamborim um brilho de luz. A aquarela virou bateria. O quadro, cortejo.
E aqui a cidade se fez personagem. Porque o Rio é um melancólico com vocação para a alegria. Sofre, mas ri; apanha, mas dança. Nas últimas décadas, colecionou cicatrizes e esquecimentos. O que a noite de Vila Isabel escancarou foi isso: a cidade ainda sabe chorar. E onde há lágrima, há futuro. Lágrima é sinal de vida. Lágrima é prova de que o coração não foi despejado.
“Oraieiê Oxum, kabecilê Xangô.”
A quadra virou casa de santo. Tambores e pincéis, curimba e aquarela, rezas que rimam. O refrão, ali, operou como um coro de tragédia — daqueles que, em Nelson Rodrigues, põem a plateia de joelhos. O que se ouviu foi menos uma canção do que uma confissão pública: pedimos perdão por ter esquecido a emoção. Queremos de volta a extravagância de sentir.
A partir daí, a fila. Não uma fila de protocolo, mas a fila dos afetos. A cidade inteira deveria alinhavar-se para cumprimentar André Diniz e Evandro Bocão — e não por idolatria, mas por gratidão. Eles fizeram o milagre a que o artista está condenado: dizer o óbvio com beleza. O óbvio é este: carnaval sem emoção é procissão sem santo. Escola sem arrepio é escola sem alma. Desfile sem choro é desfile sem rua.
E convém dizer: nada disso despreza a técnica. O carnaval é disputa, e que bom que seja; é projeto, é inventário de soluções. Mas técnica é o trilho, não o trem. Letra e melodia, evolução e harmonia — o casamento só dá certo quando a cerimônia inclui a cidade inteira como madrinha. Foi o que aconteceu. A obra abraçou a proposta dos carnavalescos com inteligência e deu a ela o que ela não compra em armarinho: alma.
“Reluz nas escolas, em Noel e Cartola.”
Reluz porque reconhece seus pais. Reluz porque sabe de onde veio. Reluz porque a Vila, quando levanta o queixo, vê acima dela um céu que é seu: branco e azul, tinta e sonho. E ao reconhecer os ancestrais, chama de volta a infância da própria cidade — os quintais, a Pedra do Sal, a roda onde o samba, feito criança travessa, inventou sozinho a sua gramática.
No fundo, o que esta madrugada nos ensinou é que a cidade está pedindo licença para ser ela mesma. Vila Isabel apenas disse "por favor, entre". O público, esmagado de cotidiano, entrou. E chorou. Chorou por si, pelos seus, pelos que já foram e pelos que ainda virão. Chorou de saudade do que ainda vai acontecer. Chorou como quem recebe um recado do futuro.
Há quem diga “calma, é cedo, a Sapucaí dirá”. Sim, a avenida é tribunal e consagração, e o samba tem quatro estações antes de virar apoteose. Mas já é possível intuir: quando a obra nasce com verdade, o restante é lapidação. O que sacode a Sapucaí não é apenas o que está certo; é o que está vivo.
“De todos os sons, a negra Vila é.”
Talvez por isso a noite tenha parecido mais longa. Havia nela uma paciência de mar, um barulho de maré que sobe, a promessa de que a cidade — esta cidade — ainda pode se salvar pelo canto. Não se trata de ingenuidade: trata-se de teimosia. A teimosia do samba é o combustível do Rio. Negam-lhe tudo; ele devolve tudo cantando.
E então, com licença do exagero rodrigueano: o que se passou naquela quadra foi tragédia grega travestida de coro de bateria. Mãe Oxum enxugou o rosto da cidade. Xangô ajeitou a balança. E Heitor, do alto de algum camarote invisível, pintou com o azul do pincel o branco da tela, assinando no rodapé: “pra você, Heitor.”
O recado está dado. Aos dirigentes, que não matem a vertigem com o compasso da norma. Aos cronistas, que não reduzam o milagre a estatística. Aos foliões, que não tenham pudor de chorar. A emoção não é efeito especial; é matéria-prima. Sem ela, a avenida é apenas asfalto organizado. Com ela, a avenida volta a ser o que foi feita para ser: um rio dentro do Rio.
A fila segue. Não é de gente: é de corações. Quem entrar nela vai descobrir que não se trata apenas de cumprimentar dois compositores; trata-se de agradecer por esta pequena ressurreição laica em que uma cidade inteira, por alguns minutos, lembrou o que sempre soube — que o samba é o modo mais direto de conversar com o impossível.
E, enquanto a noite se dobra, a promessa permanece: o samba crescerá com a gravação, criará músculos no Boulevard, ganhará fôlego no ensaio técnico e, se os deuses consentirem, atravessará a Marquês com a majestade de quem já é popular antes de ser campeão. Quando isso acontecer — se acontecer —, não será surpresa. Será justiça. Porque justiça, no carnaval, é quando a lágrima acerta o compasso.
“Meus sonhos e tambores, tintas e Prazeres.”
O resto é silêncio bom: aquele que vem depois do choro, quando a cidade respira em uníssono. Nessa pausa, a gente ouve melhor a resposta que importava desde o começo. O Rio, ainda que ferido, está vivo. E uma cidade viva sempre encontra seu samba. Colorido e com muito batuque.