Outro incêndio que se misturou à história do Fla

O Flamengo é um clube da Zona Sul do Rio de Janeiro, a região onde vivem algumas das mais ricas famílias da cidade. Foi fundado no bairro homônimo, teve o seu primeiro estádio na Rua Paysandu (em frente ao Palácio Guanabara) e, depois, estabeleceu-se na Gávea, à beira da Lagoa Rodrigo de Freitas. Tantos fatores elitistas, porém, não foram impeditivos para que o rubro-negro construísse o mais popular grupo de torcedores do país.

Historiadores alegam que as transmissões de rádio dos anos 30, 40 e 50 foram fundamentais para que o caso de amor entre o clube e o povo fosse solidamente construído. Mas era ali, vizinho à sede inaugurada em 1938, que estava o forte elo entre o Flamengo e as camadas mais populares da sociedade: a Favela da Praia do Pinto. Talvez daí tenha surgido essa tão natural proximidade entre o rubro-negra e a favela, elemento que recentemente tentaram jogar para debaixo do tapete — mas essa é uma outra história.


A Favela da Praia do Pinto nos anos 60: terreno cobiçado pelo mercado imobiliário

O assunto aqui é a Favela da Praia do Pinto e sua forte influência na trajetória histórica do Flamengo. Há exatos 50 anos, esta comunidade foi vítima de um gigantesco incêndio, que dizimou as moradias e deixou cerca de 9 mil desabrigados. Até hoje, paira uma enorme suspeita de que o fogo teria sido proposital, pois a área onde se localizava a favela, altamente valorizada, era de interesse dos especuladores imobiliários. O Rio (então Estado da Guanabara) vivia sob a gestão do governador Carlos Lacerda, indivíduo que não tinha lá muita admiração pelo povo e determinou como política de governo um intenso movimento de retirada das favelas da Zona Sul (quem tiver mais interesse sobre o tema deve assistir o documentário “Remoção”, de Luiz Antônio Pilar).


Pouco tempo depois do incêndio, foi logo aprontado um projeto para a construção de um condomínio no local onde era a Favela da Praia do Pinto

O incêndio caiu como uma luva para os interessados na remoção. A comunidade e seus moradores foram transferidos para o bairro de Cordovil, na Zona da Leopoldina. Fisicamente aquele povo se afastava do Flamengo, mas os laços anímicos que passaram a unir o Flamengo e a favela permanecem intactos até os dias de hoje.

Há dez anos, a TV Brasil produziu uma edição do programa De Lá pra Cá, alusivo aos 40 anos do incêndio que destruiu a favela que ficava à beira da Lagoa Rodrigo de Freitas.

O pessoal do Twitter Flamengo da Gente publicou hoje esta história em sua conta e reproduzimos aqui para que todos possam ver essa passagem que faz parte da recente história urbana do Rio de Janeiro.

Há 50 anos, a partir das 4h da madrugada de um 11 de maio como este, começou a arder em fogo a Favela da Praia do Pinto, vizinha ao Clube de Regatas de Flamengo. O incêndio só foi contido às 10h da manhã. Pelo menos 9 mil pessoas ficaram desabrigadas.


Entre as famílias desabrigadas, a de Julio César “Uri Geller”, futuro craque do Flamengo. Em um documentário sobre a Cruzada São Sebastião, de Lúcio de Castro, o ídolo rubro-negro reviveu as cenas daquela madrugada:

O laço entre a Favela da Praia do Pinto e o Flamengo. Na edição de 12/05/1969 do Jornal do Brasil, um dos moradores desabrigados e removidos da Favela da Praia do Pinto falou de sua história com clube:

Até os anos 1960, a garagem de barcos do Flamengo na Lagoa era um galpão rude nos fundos do Estádio da Gávea, vizinho à Favela da Praia do Pinto.

A Favela da Praia do Pinto e o Flamengo cresceram em paralelo à beira da Lagoa, a partir do mesmo período (anos 1930). A favela, impulsionada pela atividade industrial na região. O Flamengo, pela construção (inacabada) de uma grande praça esportiva.

Em 1969, de acordo com o Correio da Manhã, Praia do Pinto tinha 250 tendinhas, três escolas, cinco igrejas, um número ainda maior de terreiros e uma escola de samba, a Independentes do Leblon, que desfilou no equivalente ao Grupo Especial em 1954.

Menos de um mês depois, o Governo da Guanabara já anunciava o leilão da área de 96 mil metros quadrados, de acordo com a manchete do Correio da Manhã (03/06/1969):

Na crônica dos anos 1950 e 1960, o Flamengo era muitas vezes chamado de “Clube da Praia do Pinto” e sua torcida, de “República da Praia do Pinto”. A associação não agradava alguns dirigentes do clube, como Ary Barroso, que em 1960, era VP Social do clube (via Revista do Esporte):

A favela que pega fogo em 11/05/1969 já estava marcada para remoção completa pelo Governo da Guanabara, e atravessava processo de esvaziamento. Os moradores saídos de lá foram levados para a Cruzada São Sebastião, Cidade de Deus e Cidade Alta (Cordovil), entre outros destinos.

Sob a repressão, era difícil expressar em público a suspeita de origem criminosa do incêndio, que acelerou o esvaziamento do local e destruiu as redes e os espaços de resistência da Praia do Pinto. Essa suspeita se manifestou abertamente anos mais tarde.

Entre outras expressões públicas dessa suspeita, vale conferir o artigo “Memórias da remoção”, do historiador Mario Sergio Brum, texto que conta com depoimentos de moradores da Cidade Alta, destino de muitos saídos da Praia do Pinto.

Apesar do incômodo de alguns de seus pares, dirigentes como o presidente histórico Gilberto Cardoso mantinham boas relações com a Praia do Pinto, sobretudo com o Sete de Setembro, clube-destaque do futebol amador, sediado na favela.

Com sete anos de idade, Adílio, da Cruzada São Sebastião, jogou com a camisa 7 do Sete de Setembro, da Praia do Pinto. Foi descoberto assim pelo Flamengo.

Foi a partir do eixo Praia do Pinto-Cruzada São Sebastião que se forjou a amizade entre Adílio e Júlio César, colegas da geração mais vencedora da história do Flamengo. A história dos dois foi contada de maneira brilhante pela revista Placar, em 1982.

Como informou o texto, Adílio era um filho da Favela da Praia do Pinto. Ele foi um dos removidos para a Cruzada São Sebastião, conjunto habitacional construído em terreno da Igreja Católica, ali próximo, por iniciativa do Cardeal Dom Helder Câmara. A história da vida do jogador virou um documentário exibido pela TV Globo, que você pode assistir no player abaixo.