o espírito da folia acordou

Por Fred Soares, em 27/02/2022

Entre 1983 e 2020, meus Sábados de Carnaval tiveram uma só morada: a Rua Marquês de Sapucaí. Fizesse chuva ou sol. Em 2021, essa pandemia infeliz me fez passar data tão relevante na cama, assistindo a vídeos de carnavais antigos. Tentei enganar a mim mesmo, tentando induzir a psique a crer que o espírito da folia estava ali. Não estava. Naquele ano, o espírito dormiu. Chegou 2022. As hipocrisias e preconceitos empurram a festa maior do povo carioca para abril. Mas a alma do carnaval já havia descansado demais. Era hora de voltar. Não ainda a seu corpo original, o Sambódromo.

Dia 26 de fevereiro de 2022, Sábado de Carnaval. Cidade do Samba. O grande desfile da Sapucaí deu lugar a uma linda prévia do que pode acontecer no certame dos 90 anos. No entanto, não foi neste terreiro que o espírito do carnaval resolveu baixar. Ele se dividiu e lançou sua luz sobre as pessoas. Elas corporificaram a essência do samba, e fez o espetáculo desta madrugada deixar uma mensagem incontestável: a alma do carnaval voltou!

Voltou na figura emocionada de Bira Presidente que, em êxtase, parecia levitar sobre a Avenida improvisada com o seu Cacique de Ramos, que inaugurou os festejos. Talvez tivesse menos a ver com a folia do que a sensação de se sentir um sobrevivente. Na pista de desfile, o sambista de 84 anos comemorou com festa o fato de ter driblado a Covid.

Voltou na emoção do compositor André Diniz, que misturou o sorriso no rosto com as lágrimas que lhe saíam dos olhos. Era duro voltar ao carnaval sem a presença física de seu pai, que nos deixou recentemente. Mas a mão que tira é a mesma que dá. E lá estava, linda, a filhinha do André, Isabel, cantando a plenos pulmões o samba da Vila... Isabel. E lá foram ambos embora, com a saudade do seu Roberto e a certeza de que o amor à arte atravessa gerações.

Voltou no sorriso da Dona Claudia, mãe da minha colega Bárbara Melo, que, vestida com um figurino que ofuscava os olhos de tanta beleza, transparecia o orgulho de ser salgueirense. O tal senso de pertencimento estava todo escancarado ali, dela ao lado de suas louváveis colegas (foto abaixo).

Voltou no rosto impávido do Gabriel Melo, autor solitário do samba da Imperatriz Leopoldinense. Via-se ali a tez de um rapaz que sempre sonhou com aquele momento (e olha que o momento pra valer é só em abril). Impressionante como do seu olhar percebia-se ao mesmo tempo comoção, coragem e desprendimento. Talvez tivesse a ver com uma vitória pessoal: Melo, além das dificuldades inerentes à disputa, me confidenciou que teve de enfrentar o preconceito contra o seu homossexualismo assumido durante o concurso de samba-enredo.

Citei estas três personagens, mas decerto havia muitas outras ali, muitas delas devidamente incorporadas no tocante momento do arrastão atrás da Beija-Flor. Todas com a aura do carnaval carregada de luz, paz, amor e solidariedade. Aliás, preceitos que seriam referendados por aquele ser maior a quem chamamos de Deus. Por isso, Ele também gosta da folia, acredite.

E, portanto, eu fico com a pureza dos dizeres da camisa que um alto e simpático rapaz trajava na Cidade do Samba: "Que Deus perdoe essas pessoas que não curtem carnaval".