um duelo de malandros na sapucaí

Por Fred Soares (@fredaosoares)

O Luiz Antonio Simas e a Gabriela Moreira dedicaram em uma edição do seu excelente podcast Encruzilhadas (o melhor criado este ano) à história do Jogo do Bicho no Rio. Obviamente, grande parte da atração foi dedicada ao mais folclórico e historiado dos contraventores: Castor de Andrade.

Os próprios apresentadores deixaram claro que seriam necessários muitos outros programas para esgotar as histórias envolvendo o Rei de Bangu.

Sei de várias. Lembrei de uma agora, e divido com todos. Passou-se em 1987, na Marquês de Sapucaí. Anualmente, Castor montava o mais suntuoso camarote do Sambódromo. Era coisa de castelo de camarões e cascata de champanhe… daí pra cima.

O contraventor sempre escolhia um homenageado. Naquele ano, resolveu laurear um adversário da sua Mocidade Independente: Jamelão, clássico intérprete da Estação Primeira de Mangueira.

O convite, porém, trazia motivos escusos. Depois de uma colocação pífia no carnaval anterior, Castor decidiu porque decidiu que sua escola venceria de qualquer maneira. A Manga conquistara o certame anterior, o segundo em três anos. A Mocidade tinha conquistado a taça exatamente naquele ínterim, em 1985. O bicheiro sabia que Jamelão era trunfo pesado da verde e rosa. E tinha total consciência de qual era o seu ponto fraco: o uísque.

Jamelão chegou ao camarote de Castor pero das 23 horas do domingo de carnaval, logo depois de desfilar numa das alegorias da Unidos do Jacarezinho, que abriu o espetáculo com uma homenagem a Lupicínio Rodrigues, compositor gaúcho, autor de vários sucessos consagrados na voz do cantor mangueirense.

O Velho Jamela foi recebido com aplausos retumbantes — recomendação de Castor, que fez questão de discursar: “Aqui, recebemos o maior cantor, não só das escolas de samba, mas também da grande música romântica brasileira. Devemos muito a Jamelão, mas não podemos pagá-lo como devíamos. Por isso, humildemente, peço a todos o mais sincero aplauso a este gênio” (não é ipisisliteris, mas o sentido foi exatamente esse).

Enquanto o intérprete era efusivamente saudado, Castor dava a ordem para o chefe dos garçons, o mesmo que organizava esse serviço até a sua morte em 1997: “não deixa faltar uísque pro velho. O copo dele não pode ficar vazio em momento nenhum, a noite toda”.

Castor tinha certeza de que, embriagado, Jamelão não iluminaria com sua voz, como de costume, a apresentação da Mangueira. A verde e rosa só entraria na Avenida, para fechar o desfile, por volta das 7h da manhã de segunda-feira. Era tempo mais do que suficiente para deixá-lo mais do que doidão.

Eram mais ou menos 5h30, quando a penúltima escola, a Imperatriz Leopoldinense, preparava-se para iniciar o seu desfile. Jamelão, diziam, trôpego, dirigiu-se a Castor e se despediu. Foi um afetuoso abraço da parte do cantor. Da parte do bicheiro, um autêntico abraço de tamanduá.

Dali a instantes, “Jamela” defenderia a sua verde e rosa. Bem devagarinho, Jamelão desceu as escadarias que levavam até a pista. No mesmo passo, foi avançando, cumprimentando as pessoas e, ao chegar à concentração, deu entrevistas para rádios e para as TVs. Pobres repórteres que tomaram esporro do velho por tê-lo chamado de ´puxador´, designação que ele detestava. Quem viu disse que as palavras saíam bem, digamos, malemolentes da boca de Jamelão.

Enfim, chegara a hora da verdade. Antônio Lemos, então coordenador de desfiles da Riotur, deu a deixa para que a Mangueira iniciasse o seu “esquenta” (momento anterior ao desfile em que a escola de samba rememora um dos seus sambas clássicos para esquentar a bateria e os componentes).

Jamelão, em excelente atuação, ajudou a Mangueira na conquista o bicampeonato do samba em 1987

Aí, num daqueles momentos mágicos que o carnaval proporciona, Jamelão inunda os alto-falantes da Sapucaí, com a sua arte, através de uma voz forte tal qual um trovão, afinada, firme, eloquente e avassaladora. O uísque fez as vezes de aditivo.

Mais à frente, escorado no parapeito do camarote, quem estava por perto só ouviu Castor balbuciar uma palavra: “FODEU”.

No dia seguinte, também no encerramento do desfile, a Mocidade fez uma apresentação deslumbrante. Digna do campeonato. Castor voltou a ter esperanças.

Dois dias depois, porém, os envelopes dos julgadores não deixaram dúvidas: Mangueira, campeã; Mocidade, vice.

Neste duelo de malandros, o de Bangu perdeu para o do Engenho Novo. E o troféu, além daquele do carnaval, foi uma (ou algumas) garrafa de uísque.