David Corrêa, a poesia eternizada

Por Fred Soares

Definitivamente, eu não era um garoto normal aos seis anos. Enquanto a molecada da minha geração queria ganhar discos com as tradicionais historinhas infantis, meu interesse era apenas em carnaval. Esperava o dia de ganhar aquele álbum anual das escolas de samba como se fosse a chegada do Papai Noel. E logo na segunda oportunidade em que esse roteiro ganhou vida, pela primeira vez me apaixonei por uma música. O título era pomposo: “Das Maravilhas do Mar, Fez-se o Esplendor de uma Noite”. David Correa era um dos compositores. E começou ali, mesmo sem que eu tivesse noção, uma idolatria por aquele que se tornaria o maior compositor da Portela.

Tenho conceitos muito rasos de psicologia. Mas acredito que grandes impactos ou influências que absorvemos em tão tenra idade têm impacto definitivo na nossa formação, sob os mais variados aspectos. Do ponto de vista musical, não tenho dúvida, aquele samba-enredo mudou minha vida. Já era fã. Virei, então, uma espécie de projeto de militante deste gênero musical que, segundo os grandes Luiz Antônio Simas e Alberto Mussa, é “o único gênero épico genuinamente brasileiro — que nasceu e se desenvolveu espontaneamente, sem ter sofrido a mínima influência de qualquer outra modalidade épica, literária ou musical”.

A definição de Simas e Mussa deixa bem claro, então, a importância que David Corrêa teve para a história do samba-enredo. Não apenas pelo fato de ter emendado uma espetacular sequência de vitórias e também ter deixado sua marca em outras grandes agremiações cariocas. O trato na poesia, a ousadia melódica e, principalmente, a noção de que era possível se fazer arte sem esquecer a demanda do mercado fizeram do grande compositor portelense o ponta de lança da disseminação deste gênero musical a nível nacional.

Foi ali, no finzinho dos anos 70 e início dos 80, que o samba-enredo decolou como uma das grandes atrações da arte brasileira. Ou ainda a maior representação dentre as manifestações populares do país. E é impossível negar a condição das obras de David, principalmente as do tetracampeonato obtido na Portela entre 1979 e 1982, como um grande chamariz deste movimento midiático do samba-enredo. Suas músicas eram corriqueiramente apresentadas nos grandes programas de auditório da TV, cada vez mais difundidos pelo Brasil graças ao início das transmissões via satélite. Nas rádios, depois de dezembro, não dava nem pra saída. Era samba-enredo o tempo todo, com destaque natural para David Corrêa e suas composições. Por conta disso, talvez não seja exagero chamar esse tempo de “A Era de Ouro do Samba Enredo”. Um período em que havia fortíssima difusão do gênero por todo o país, sem ainda a imposição de uma rígida padronização estilística que se adonou do gênero a partir do início dos 90.

Voltando à minha devoção, os anos se passaram e, por mais que às vezes ele não acertasse na mão com novas obras, a riqueza daquelas que já tinham se tornado históricas deixava o grande David numa condição intocável, de imortal desta linda manifestação de arte. Por tudo isso, imaginem a minha emoção quando tive a chance de conhecê-lo. Foi em 1998, pelas mãos do amigo Claudio Cruz, a quem recentemente havia conhecido. Cruz, conhecido por sua paixão pelo Flamengo, é também um fanático portelense. Sentamos na mesa de um bar, na Tijuca, e além do papo, começamos a cantarolar. Foi uma noite inesquecível. Não diria que estabeleci uma amizade com David. Mas trocamos telefones. E, desde então, quando nos falávamos, o assunto era sempre o samba-enredo. Eu, aquele garoto apaixonado pela obra, agora tinha a chance de conversar diretamente com o criador daqueles sambas feitos para o coração e para os pés. Era demais!

Acostumei-me também a ouvir os lamentos anuais do David quando era eliminado na disputa da Portela. Na segunda-feira seguinte,eu já esperava aquela ligação, sempre com o mesmo conteúdo: “meteram a mão. Tava tudo armado. Vou sair da Portela!”. De fato, anos antes, ele realmente deixou a escola por essa razão, e faturou vitórias no Salgueiro, na Mangueira, na Vila Isabel e na Imperatriz Leopoldinense. Passou também pelo Império Serrano, em que só não venceu em 1989 porque se deparou com um concorrente de peso. Perdeu para Aloísio Machado e Arlindo Cruz na disputa por “Jorge Amado. Axé, Brasil!”.

A questão era que seu coração portelense sempre falava mais alto. E lá ia David de volta para Oswaldo Cruz. Que bom que, num período com disputas mais pasteurizadas, ele obteve mais uma vitória na sua escola, para o carnaval de 2002. Naquela ocasião, fui eu a pegar o telefone para conversar com ele. Depois da minha provocação (“Dessa vez, você não me ligou, né?), ele me disse algo que se mostrou um vaticínio: “vitórias como essa, de compositores sem dinheiro e que não têm condição de encarar o gasto da disputa, serão cada vez mais raras”.

Ele estava certo. Quem sabe se sua previsão não se confirmasse não teríamos por aí outros amigos do rei, macunaímas, circos, mares… tão incríveis, fantásticos e extraordinários que emocionassem pra sempre esse nosso Brasil brasileiro.

Valeu, David! Portela na área!

PS — Quem quiser saber mais sobre a vida e obra de David Corrêa, é imperdível a edição especial do Samba Leal, produzido pelo amigo Eugênio Leal.