arte escrita com bum bum, paticumbum e prugurundum

Por Fred Soares, em 22/02/2022

A memória afetiva da infância norteia algumas paixões da minha vida: o futebol, a praia, as festas das ruas, o sanduíche do Cervantes e, claro, o carnaval, objeto destas linhas. E essa relação umbilical com os festejos de momo foi solidificada em circunstâncias mágicas e inusitadas há exatos 40 anos, ao som de uma onomatopeia que até hoje arranca sorrisos, incentiva batucadas e induz a um sinuoso requebrado de cadeiras: Bumbum Paticumbum Prugurundum.

Antes de qualquer coisa, é bom alertar como surgiu nomenclatura digna de fazer a língua enrolar. Nos anos 70, em entrevista a Sérgio Cabral (o pai) para o Pasquim, Ismael Silva, o criador da primeira escola de samba - a Deixa Falar - reproduziu desta forma a sonoridade da batida do samba, inventada pelos pioneiros do Estácio, na segunda década do século 20. Pouquíssimo tempo depois, há 90 anos especificamente, aquele balanço passou a tomar conta das avenidas cariocas nos dias de folia. Faltava ainda muito tempo para que eu nascesse. Mas a minha história com o carnaval teria relação com a aquele registro histórico.

Em 1980, Dona Macrina, minha mãe querida, resolveu dar ao filho um presente de Natal incomum para um menino de seis anos - um LP (long play, também conhecido como disco ou bolacha) das escolas de samba do primeiro grupo. Até hoje, não sei por quê. A família tinha origem nordestina, e o forrozão da festa do Dia dos Pais era a referência musical que eu tinha. Um disco de samba? Coloquei na vitrola e ouvi. Curti. E também descobri que tinha uma facilidade danada para decorar. Poucos dias depois, tinha na ponta da língua a letra das composições das dez agremiações que desfilariam no carnaval de 1981 na Rua Marquês de Sapucaí.

Procurei saber mais sobre o assunto com meu saudoso tio Zeca. Com ele, funcionário da Riotur (empresa do município do Rio que geria todo o carnaval), recebi os primeiros ensinamentos sobre aquela festa popular que era a razão de ser de tanta gente boa.

Já sabendo do paraneuê todo, pus-me à frente de um velho aparelho National, sintonizado no canal 2 da saudosa TV Educativa para assistir ao tão famoso certame das escolas de samba do Rio. No meio da noite, garoto, fui vencido por Morfeu e adormeci. Mas não sem antes ver uma agremiação de nome pomposo: Império Serrano.

Dias depois, vi que ela acabou em último lugar. Fiquei triste, pois havia mesmo simpatizado com a alcunha daquela entidade que, já sabia, era de Madureira.

A decoração da Marquês de Sapucaí para o carnaval de 1980, quando dez agremiações do Grupo 1-A passaram no palco principal dos desfiles

A vida seguiu e, um ano depois, estava no mesmo sofá, à frente da mesma TV. Eram umas três da tarde do Domingo de Carnaval. Lembro bem: assistia na mesma TV Educativa ao compacto do desfile dos blocos de enredo, que havia terminado instantes antes na Sapucaí. Estava pronto para, a partir das 18h, cumprir o ritual do ano anterior, mas desta vez devidamente preparado para suportar a noite em claro.

Eis, então, que aparece lá em casa, na esquina das ruas Barata Ribeiro e Prado Jr., em Copacabana, o meu tio Zeca. Eu estava sozinho. Minha mãe, guerreira, via no carnaval uma fonte de renda. Ela, cabelereira, estava no andar de cima preparando as dondocas que iriam naquele dia aos camarotes da Sapucaí ou nos bailes de luxo da Zona Sul.

Veio então a proposta irrecusável do meu tio: "e aí, moleque. Quer ver o desfile comigo lá na Avenida?".

Não pensei duas vezes. Vesti a roupa e me mandei praquele teatro dos sonhos, a bordo do velho Volkswagen TL azul que era a salvação da família. Ia ver o desfile de camarote, pensa que é pouca coisa? Mal sabia que muita água ia passar debaixo daquela ponte até o meio-dia da segunda-feira. Minha mãe? Coitada. De nada foi avisada. E só no dia seguinte ela foi saber o que acontecera com seu rebento.

O desfile começou. E tudo era só encantamento para aquele guri que jamais imaginou viver ainda em idade tão tenra um clima de tanto êxtase. Desta vez, Morfeu tirou folga e foi carregar outro. Eu só queria saber de cantar. Sabia todos os sambas, mais talvez do que muitos desfilantes.

O dia amanheceu. Nunca tinha visto esse fenômeno da natureza. E com a Portela desfilando à minha frente. Sabe aquelas imagens que jamais lhe sairão da retina? Pois é. Essa é uma das que compõem a minha vida. Possivelmente até a primeira delas.

A Estação Primeira de Mangueira com as suas Mil e Uma Noites Cariocas, no carnaval de 1982

vinhaDepoisvinhaDepoivinhaDepoisvinhaDepoivinhaDepoisvinhaDepovinhaDepoisvinhaDepois de toda essa magia, veio o inusitado. "Bóra, moleque. Vamos descer. Não vou te deixar sozinho aqui, não". Entendi nada. E lá fomos nós, pela pista mesmo, rumo à área de armação das escolas. Até então, não tinha sacado nada. Já era manhã alta. Um calor senegalesco. Até que consegui compreender a do meu tio: ele desfilaria pelo Império da Tijuca, a penúltima a se apresentar. E planejava sair dali direto pra casa (imagino como estava minha mãe a essa altura, desesperada).

"Olha só. Você fica aqui. Não sai de jeito nenhum. Pode tomar quantos sorvetes que você quiser". O "aqui" ao qual ele se referia era uma barraca da Kibon, que ficava ali bem na esquina de Sapucaí com a rua Benedito Hipólito. Ou seja, o sobrinho de 8 anos fora largado na rua numa manhã de carnaval, debaixo de um sol medonho, para ver ali da pista as duas últimas escolas. Foi um dos grandes presentes da minha vida.

Passou a Tijuca. E então veio a magia: aquela manifestação popular nascida 50 anos antes entreleçava-se definitivamente com a minha vida. E logo graças àquela escola de samba cujo nome tinha ficado gravado na minha mente - Império Serrano.

Lembro-me vagamente do emocionado discurso do, presumo, presidente. E claramente do Roberto Ribeiro, notório intérprete da MPB, fazendo a passagem de bastão para o novo puxador, Quinzinho. Começou, então, a ser entoado aquele que tinha sido o grande líder das paradas de sucesso dos últimos dois meses, o samba-enredo Bum Bum Paticumbum Prugurudum, de Beto sem Braço e Aloísio Machado.

Rapaziada, como diria Luciano do Valle, não há palavras que possam descrever os minutos seguintes. Era um calor humano, uma explosão de felicidade... como se fosse o mais lindo dos quadros, só que em movimento, pintado em tempo real na minha frente. Não sei se o que me emocionava mais era o que eu via ou o que ouvia. Ou os dois. Sei lá. Aquela sinestesia carnavalesca tomou conta de mim como as entidades baixam sobre seus cavalos nas reuniões mediúnicas.

A emoção das pessoas em cortejo, o canto em uníssono que vinham de todos os lugares, a faca nos dentes daquela gente que vinha com tudo para superar o último lugar do certame anterior. Era uma série de coisas tão bonitas acontecendo ali que, talvez instintivamente, eu pensasse que, se o mundo acabasse naquele momento, tava tudo de boa.

O Império Serrano numa manhã gloriosa encantou o povo com o seu Bum Bum Paticumbum Prugurundum

ImpérioÀquela altura, eu não tinha mais voz. Cantei o tempo todo, absurdamente. Esqueci de tomar sorvete, de beber água. Lembro só da minha camisa do Flamengo, réplica da de 1981, completamente encharcada de suor. O Império, glorioso, já havia passado inteiro à minha frente. Foram minutos em que fiquei inerte, como se hipnotizado por toda aquela miríade de alegria.

Meu tio apareceu, minutos depois. "Vamo pra casa?". Fui, calado. Meio pelo cansaço, meio por aquela experiência até então única. Estava convicto de que tudo aquilo faria parte da minha vida até o fim dos meus dias.

Nem a ira da minha mãe, que só faltou esbofetear o irmão, freou aquele ímpeto. "Moleque, vai tomar banho. E descansa porque daqui a pouco tem o desfile do segundo grupo pra gente ir", disse o Tio Zeca. Não adiantou a cara de raiva da Dona Macrina. Aquela queda de braço ela havia perdido. Pra sempre.

E hoje faz 40 anos daquele dia tão fundamental pra mim. Daqui a 2 meses, novamente o Império Serrano vai encerrar o desfile do qual participará. Confesso que vou praquele mesmo cantinho de onde assisti ao triunfo de 1982. Que minha mãe, meu tio e todos os meus mentores estejam de braços dados comigo pra revivermos aquele momento, e agradecer ao Império Serrano pela fundamental contribuição de fazer o amor pelo carnaval tomar conta definitivamente do meu coração.