1982, um ano como se fosse o primeiro

Por Fred Soares (@fredaosoares)

Toda vez que aparece uma seleção brasileira jogando um futebol um pouquinho melhor, lá vem a insistente comparação: “quem é melhor? A equipe de Tite ou o esquadrão de 82”. A minha resposta: não sei. Mal entendia de bola aos meus oito anos, mas vejo claramente que a atual prática ludopédica parece até um outro esporte se comparada ao que se via nas canchas há 35 anos.

O ano de 1982 e a Copa do Mundo — motivo de tantas reminiscências, sorrisos e lágrimas — entraram na minha vida menos pelo que se viu nos gramados, e muito mais pela aura sugerida ao Rio de Janeiro naquele comecinho dos anos 80 e que começou a construir o imaginário de uma criança que, na prática, abria os olhos para a vida.


Leonel Brizola e Saturnino Braga (à esquerda) venceram as eleições para o governo do estado e para o Senado

As ruas em verde e amarelo e o clima de alegria no Rio de Janeiro às vésperas daquele Mundial já eram o reflexo do ensaio de liberdade que o país começava a vivenciar com a chegada do ano da tão ansiada eleição para governador. Lá em casa, ouvia de soslaio as discussões: “se conseguirmos eleger o Brizola, vamos dar uma tapa de luvas de pelica na cara desses milicos”. comentava o meu querido tio Arnaldo, o mesmo a quem devo o amor pelas escolas de samba. O início da realização do sonho do velho Arnaldo foi noticiada pela edição de 17 de maio do “Jornal do Brasil”. O diário confirmava o ex-governador gaúcho, ao lado de Darcy Ribeiro e Saturnino Braga, como capitão do trio de ferro do recém-fundado PDT que buscaria as chaves do Palácio Guanabara e por um lugar no Senado Federal.

O ar da política voltava a se tornar respirável, mas não tinha jeito quando o futebol entrava na pauta. Todos aqueles anos de luta pelo restabelecimento democrático iam para segundo plano. Justo? Tendo a achar que sim. Afinal, do mesmo jeito que se esperava pela volta às urnas depois do regime estabelecido pelo golpe de 64, sonhava-se com a volta da festa por mais um título mundial, desta vez sob um céu bem menos cinzento do que em 1970, momento tão bem retratado pelo ótimo “O ano em que meus pais saíram de férias”, de Cao Hamburger¹, filme que mostra a ambiguidade da alegria pelo show nos gramados do México com a violência e a morte perpetradas pela ditadura na nossa pátria amada, Brasil.


O vinil lançado por Junior imortalizou o samba “Voa, Canarinho”

Os anos de chumbo, porém — e ainda bem —, não povoavam meu imaginário. Era só um menino de oito anos, que adorava futebol, e jamais vira tamanha mobilização festiva. Naquele mesmo 1982, vivi o carnaval de perto pela primeira vez. Nas Avenidas do samba e dos blocos, o Rei Momo andava de braços dados com Zico. Era impossível não se envolver. O mercado, esperto, soube bem explorar aquele psicosfera futebolística. Lançou-se tudo o que você possa imaginar. Um compacto gravado pelo lateral Junior trazia o célebre “Voa, Canarinho”, música mais executada pelas rádios do Brasil no primeiro semestre.

A Gilette do Brasil, de olho no potencial consumidor daquele torcedor obcecado pela Copa, criou um personagem: o Pacheco². A animação retratava o sentimento do torcedor diante daquela perspectiva quase enlouquecedora de levantar a taça. Sua paixão pela seleção brasileira era um espelho do que se via nas ruas. A empatia com o público, portanto, foi imediata. E tão intensa que, muitos anos depois, e até hoje, Pacheco virou adjetivo para designar o torcedor fanático que se esquece até da mulher.


O álbum de figurinhas do chiclete Ping Pong era atração junto à garotada

Você acha que ficou por aí? Nada disso. As crianças também eram alvos potenciais das grandes empresas. Se você tem pelo menos 40 anos, certamente ganhou algumas cáries depois de tanto chiclete Ping-Pong. Tudo por causa das figurinhas, que vinham agarradas à goma de mascar, e eram disputadas a tapa pela criançada que tentava completar o álbum. Tem muita professora dessa época que arrancava os cabelos para puxar os alunos de volta à aula após o recreio, pois eram intermináveis as disputas de bafo promovida pela garotada que fazia para conseguir a figurinha que insistiam em não aparecer junto aos chicletes. Lembro de um colega de Anglo-Americano que dizia: “só falta aquele goleiro comunista”. Fui saber só depois: a menção era ao goleiro soviético Dassaev. E o comentário político, cujo significado só fui compreender muitos anos depois, era resultado das conversas com o pai, um futuro deputado federal conservador.

Vocês percebem, pelo relato, que havia, sem exagero, uma obsessão no Rio e no Brasil. A nação nem pensava em outro resultado que não fosse o tetracampeonato. E, nesse clima, o Brasil arrancaria na Copa do Mundo, em 14 de junho, exatamente diante do país contra o qual a ditadura militar espargiu todo seu ódio: a União Soviética.

Os olhares se voltavam, praticamente todos, para a telinha da TV. A Rede Globo comprou a exclusividade dos direitos de transmissão. Era a primeira vez de um monopólio que tanto mal faria ao futebol brasileiro (mas isso é tema pra outra conversa). Luciano do Valle³, com entonação firme e vibração ímpar, transformava-se na voz oficial do Brasil. A voz que algumas semanas depois certamente gritaria: “Brrrrrrasil, tetracampeão mundial de futebol”.

A vitória inicial foi sofrida: de virada, com o gol do triunfo por 2 a 1 saindo de um tiro de canhão dos pés de Éder já nos minutos finais. A partir daí, a seleção só bailou em terras espanholas: 4 a 1 na Escócia; 4 a 0 na Nova Zelândia; e um acachapante 3 a 1 sobre a Argentina, com Maradona e tudo. Este último resultado, aliás, serviu para despertar a já tradicional soberba verde-e-amarela quando o assunto é o velho esporte bretão.


“Agora é só buscar a taça”, “Já somos campeões”. “Ninguém segura este país” (ops, esse era um slogan da Ditadura, mas que muita gente usou para a ocasião esportiva). Ainda mais porque a próxima adversária seria a Itália. A Azurra havia empatado os três jogos na primeira fase e só tinha dado o ar da graça na vitória sobre os argentinos. Era um alerta, que ninguém preferiu levar em conta. Resultado: o Estádio Sarriá, em Sevilha, acabou por ser o palco de uma das maiores tragédias do futebol mundial. O super-time do Brasil caiu para o limitado — mas esforçado — esquadrão italiano por 3 a 2, numa tarde inspirada de Paolo Rossi.


A histórica capa do “Jornal da Tarde” no dia seguinte à Tragédia do Sarriá

A nuvem cinzenta que parecia deixar o nosso céu voltava de forma ainda mais avassaladora. Nos olhares, havia o sentimento de que alguém muito querido havia morrido. O choro de velhos e crianças pelas ruas da cidade se transformou em lugar comum. O meu, inclusive. Uma cena que foi imortalizada na célebre capa do Jornal da Tarde do dia seguinte. Ali estava o rosto de cada brasileiro que chegava à mais dura e impensável das conclusões: o sonho do tetra chegara ao fim. Era quase o fim do mundo.

Mas nada que o tempo não curasse. Derrota consolidada, era hora de secar as lágrimas e colocar a vida para seguir, como escreveu Carlos Drummond de Andrade, no “Jornal do Brasil”, na edição de 7 de julho daquele ano, num trecho que separei.

Eu gostaria de passar a mão na cabeça de Telê Santana e de seus jogadores, reservas e reservas de reservas, como Roberto Dinamite, o viajante não utilizado, e dizer-lhes, com esse gesto, o que em palavras seria enfático e meio bobo. Mas o gesto vale por tudo, e bem o compreendemos em sua doçura solidária. Ora, o Telê! Ora, os atletas! Ora, a sorte! A Copa do Mundo de 82 acabou para nós, mas o mundo não acabou. Nem o Brasil, com suas dores e bens. E há um lindo sol lá fora, o sol de nós todos.

E agora, amigos torcedores, que tal a gente começar a trabalhar, que o ano está na segunda metade?”

Arregaçamos a manga, seguimos a vida. A surpreendente e carrasca Itália levou a Copa pra Roma; Brizola foi eleito; meses antes, o Império Serrano ganhou o carnaval e cá estou para falar daquele maravilhoso ano de 1982.

¹ O trailer oficial de “O ano em que meus pais saíram de férias”



² Pacheco, o protagonista da campanha publicitária da Gillete em 1982